quinta-feira, janeiro 26, 2006

Febre de poesia - Julia Moreira

Um dia Clara acordou diferente;
parecia apenas saber falar palavras de desvario...
do passarinho que desapareceu de cantar
de sonho, de neve, mão, coração!
Paes Gullar Drummond Rosa Bonfim!
Onça que come menino,
minutos correndo nas veias,
janela aberta
luz que entra!

Chamaram um médico
de preocupados que estavam
com o desvario de Clara.

- Ah, não é nada! Ela só quer brincar de poesia!

Cantiga para não morrer - Ferreira Gullar

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Acima de qualquer suspeita - José Paulo Paes

a poesia está morta

mas juro que não fui eu

eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la

imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres car-
los drummond de andrade manuel bandeira murilo
mendes vladmir maiakóvski joão cabral de melo neto
paul éluard oswald de andrade guillaume appolinaire
sosígenes costa bertolt brecht augusto de campos

não adiantou nada

em desespero de causa cheguei a imitar um certo (ou
incerto) josé paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada
de ferro araraquarense

porém ribeirãozinho mudou de nome a estrada de ferro
araraquarense foi extinta e josé paulo paes parece
nunca ter existido

nem eu

Calor - Adriana Calcanhotto

Tarde turquesa
Quarenta graus
Talvez porque você não esteja
tudo lateja
Tarde sem nuvem
Cincoenta graus
Talvez por sua ausência
tudo derreta

Noite sem ninguém
Nada se mexe
Eu sonho nosso amor a sério
E você em outro hemisfério

Enquanto tudo derrete
Enquanto tudo derrete
Enquanto tudo parece
Derreter

http://www.adrianacalcanhotto.com.br

Infantil - Manoel de Barros

O menino ia no mato
E a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou por dentro do corpo do menino
E ele foi contar para a mãe.
A mãe disse: mas se a onça comeu você, como é que o caminhão passou por dentro do seu corpo?
É que o caminhão só passou renteando meu corpo
E eu desviei depressa.
Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer razão.

O que Foi - Arnaldo Antunes

O que
(se) foi
é (s)ido

Delírio - Guimarães Rosa

No parque morno, um perfumista oculto
ordenha heliotrópios...
Deixa aberta a janela...
Minhas mãos sabem de cor o teu corpo,
e a alcova é morna...
Apaguemos a luz...

Não sentes na tua boca
um gosto de papoulas?...
Passa o lenço de seda de tuas mãos
sobre minha fronte,
e não me digas nada:
a febre está, baixinho, ao meu ouvido,
falando de ti....

Fragmento de Poema - Paulo Bonfim

Nunca seremos os mesmos
Na face azul da manhã.
Somos os prisioneiros do tempo:
Há minutos vermelhos
Correndo em nossas veias

quarta-feira, janeiro 25, 2006

A moça do vestido verde - Flora Figueiredo

Discreta, ela atravessa a rua em linha reta.
Todos os dias a vejo passar no mesmo horário.
O vestido ligeiramente comprido,
cintura no lugar, bolsa na mão.
No pescoço, o cordão e o escapulário.
Ela não olha para os lados.
Para quê?
Mulheres são indecentes, homens safados.
O melhor é fingir que não se vê.
E os camelôs e suas barracas ilegais?
Ela arrisca um olho
seduzida pelo barulho colorido,
mas logo se arrepende e não olha mais:
seu recato não permite resvalar o proibido.
Ontem, a moça do vestido verde deu um encontrão
no rapaz de bigodinho, pasta, perfume, colarinho;
o conteúdo da bolsa espalhou-se pelo chão.
Constrangido, ele ajudou a moça do vestido,
pediu desculpas, beijou-lhe a mão.
Hoje, eu a vejo passar na hora certa.
A bolsa, a cintura no lugar, a postura ereta.
Ela pára, olha para os lados, retoca-se no espelho.
A moça segue radiante. O vestido é vermelho.

terça-feira, janeiro 24, 2006

Convite – José Paulo Paes

Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.

Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.

As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.

Como a água do rio
que é água sempre nova.

Como cada dia
que é sempre um novo dia.

Vamos brincar de poesia?

Dilema - Antonio Cicero

O que muito me confunde
é que no fundo de mim estou eu
e no fundo de mim estou eu.
No fundo
sei que não sou sem fim
e sou feito de um mundo imenso
imerso num universo
que não é feito de mim.
Mas mesmo isso é controverso
se nos versos de um poema
perverso sai o reverso.
Disperso num tal dilema
o certo é reconhecer:
no fundo de mim
sou sem fundo.

Exausto - Adélia Prado

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

Antes do Nome - Adélia Prado

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás",
o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível
muleta que me apóia.

Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.

Em momentos de graça, infreqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

Tarde de cetim - Flora Figueiredo

Na penumbra da sala fechada,
pingam palavras de camurça
sobre os seios brancos da donzela recatada.
Dedos fervilhantes afagam almofadas
à espreita de mamilos principiantes.
No piano de cauda, pálpebra baixada,
dormita o teclado.
Chopin na partitura queda-se calado.
O ar é quente e a sala escura.
Do par de candelabros escorrem
luzes de cera frouxamente amarelas.
O anjo rotundo baixa a sentinela.
Rompe-se a textura do silêncio
com um súbito ruído:
sobre a calma do tapete, um cristal partido.
Tomba uma rosa cor-de-vinho
junto ao coração de esmalte azul-marinho.

sábado, janeiro 21, 2006

Blanco - Octávio Paz

Me vejo no que vejo
Como entrar por meus olhos
Em um olho mais límpido

Me olha o que eu olho
É minha criação
Isto que vejo

Perceber é conceber
Águas de pensamentos
Sou a criatura do que vejo

sexta-feira, janeiro 20, 2006

INSCRIÇÃO - Cecília Meireles

Sou entre flor e nuvem,
estrela e mar.
Po que havemos de ser unicamente humanos,
limitados em chorar?

Não encontro caminhos
fáceis de andar.
Meu rosto vário desorienta as firmes pedras
que não sabem de água e de ar.

E por isso levito.
É bom deixar
um pouco de ternura e encanto indiferente
de herança, em cada lugar.

Rastro de flor e estrela,
nuvem e mar.
Meu destino é mais longe e mais passo mais rápido:
a sombra é que vai devagar.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Como nascem as manhãs - Flora Figueiredo

O fundo dos olhos da noite
guarda silêncios.
Esconde na retina
a menina que corre descalça em campo aberto.
Pálpebras cerradas, a noite emudece.
A menina com medo
faz um furo no escuro com a ponta do dedo.
Cai um pingo de luz.
Amanhece.

sexta-feira, janeiro 06, 2006

O Urubuzeiro - Manoel de Barros

Meu amigo Sebastião estourou a infância dele e mais duas pernas
No mergulho contra uma pedra na Cacimba da Saúde.
Quarenta anos mais tarde Sebastião remava uma canoa no rio Paraguaio
E deu o barranco de uma charqueada.
Sebastião subiu o barranco se arrastando como um caranguejo trôpego
Até a casa do patrão e pediu um trabalho.
O patrão olhou para aquele pedaço de pessoa e disse:
Você me serve para urubuzeiro.
(Urubuzeiro era uma tarefa de espantar urubus que atentavam nos tendais
de carne.)
trabalho de Sebastião era espantas os urubus.
Sebastião espantava espantava espantava.
Os urubus voltavam de bandos.
Sebastião espantava espantava.
Um dia pegaram Sebastião a prosear em estrangeiro com os urubus.
Chegou que Sebastião permitiu que os urubur fizessem farra nas carnes.
Os urubus faziam farra nas carnes e conversavam em estrangeiro com
Sebastião.
Veio o patrão e mandou Sebastião para o manicômio.
No manicômio ninguém compreendia a língua de Sebastião
De forma que Sebastião despencou do seu normal
E foi encontrado na rua falando sozinho em estrangeiro.