quinta-feira, dezembro 14, 2006

Discurso - Cecília Meireles

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Simultaneidade - Mário Quintana

- Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver!
- Você é louco?
- Não, sou poeta.

terça-feira, novembro 21, 2006

Carrego as Estações - Carlos Felipe Moisés

Carrego as estações comigo
e tenho as mãos cansadas.
(No bolso esquerdo um riacho murmura.)
Ali, onde pequenas pedras se acumulam,
uma canção exala seu vapor,
depois se perde.

Jardins de primavera circulam no meu corpo,
um céu de ouro verte seu perfume
e um vento ignorado agita suas asas.
Pasto de segredos,
mescla de memória e desejo,
meu corpo caminha com a chuva
(carrego as estações comigo),
à procura do sonho de uma nuvem fria.

Tantas folhas trago nos braços
que um pássaro, solidário, se oferece
para carregar as estações comigo.
Do peito aberto os meus jardins se vão
e o pássaro me ajuda (memória
e desejo) a semear meu corpo.

Ali planto meus braços,
debaixo daquelas árvores meus olhos ficam,
os pés, roídos pela terra, penduro numa árvore
e o tronco multiplico em cem pedaços –
lá vai, junto com as pedras,
no bojo do riacho antigo.

E pois que carrego as estações comigo,
os lábios deixo além, no descampado,
e peço ao pássaro que pelos cabelos atire
o que sobrou de mim
àquele mar onde me espera a memória
(e o desejo) do tempo em que não soube
carregar as estações comigo.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Além Do Que Se Vê - Marcelo Camelo

Moça, olha só
O que eu te escrevi
É preciso força pra sonhar e perceber
que a estrada vai além do que se vê
Sei que a tua solidão me dói
e que é difícil ser feliz
mas do que somos todos nós
você supõe o céu
Sei que o vento que entortou a flor
passou também por nosso lar
e foi você quem desviou
com golpes de pincel

Eu sei, é o amor que ninguém mais vê
Deixa eu ver a moça
Toma o teu, voa mais
que o bloco da família vai atrás

Põe mais um na mesa de jantar
por que hoje eu vou pra aí te ver
e tira o som dessa TV
pra gente conversar
Diz pro bamba usar o violão
pede pro Tico me esperar
e avisa que eu só vou chegar
no último vagão

É bom te ver sorrir
Deixa vir à moça
que eu também vou atrás
e a banda diz: assim é que se faz!

domingo, novembro 12, 2006

Uma frase de Saramago

"O que há de mais bonito é nascer o homem sem asas e fazê-las crescer"

quinta-feira, novembro 09, 2006

Soneto CXVI - Shakespeare

De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça: amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera,
Ou se vacila ao mínimo temor.

Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante
Cujo valor se ignora, lá na altura.

Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfanje não poupe a mocidade;
Amor não se transforma de hora em hora,

Antes se afirma para a eternidade.
Se isso é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.

quarta-feira, novembro 01, 2006

Do It - Lenine

Tá cansada, senta
Se acredita, tenta
Se tá frio, esquenta
Se tá fora, entra
Se pediu, agüenta

Se sujou, cai fora
Se dá pé, namora
Tá doendo, chora
Tá caindo, escora
Não tá bom, melhora

Se aperta, grite
Se tá chato, agite
Se não tem, credite
Se foi falta, apite
Se não é, imite

Se é do mato, amanse
Trabalhou, descanse
Se tem festa, dance
Se tá longe, alcance
Use sua chance

Se tá puto, quebre
Ta feliz, requebre
Se venceu, celebre
Se tá velho, alquebre
Corra atrás da lebre

Se perdeu, procure
Se é seu, segure
Se tá mal, se cure
Se é verdade, jure
Quer saber, apure

Se sobrou, congele
Se não vai, cancele
Se é inocente, apele
Escravo, se rebele
Nunca se atropele

Se escreveu, remeta
Engrossou, se meta
Quer dever, prometa
Pra moldar, derreta
Não se submeta

sábado, outubro 28, 2006

Liberdade - Los Hermanos

Perceber aquilo que se tem de bom no viver é um dom
Daqui não,
eu vivo a vida na ilusão
Entre o chão e os ares vou sonhando em outros ares, vou
Fingindo ser o que eu já sou
Fingindo ser o que eu já sou
Mesmo sem me libertar eu vou
É, Deus,
parece que vai ser nós dois até o final
Eu vou ver o jogo se realizar de um lugar seguro
Seguro
De que vale ser aqui
De que vale ser aqui
Onde a vida é de sonhar
Liberdade

quinta-feira, outubro 19, 2006

Veja Bem, Meu Bem - Marcelo Camelo

Veja bem, meu bem
Sinto te informar que arranjei alguém
pra me confortar.
Este alguém está quando você sai
E eu só posso crer, pois sem ter você
nestes braços tais.

Veja bem, amor.
Onde está você?
Somos no papel, mas não no viver.
Viajar sem mim, me deixar assim.
Tive que arranjar alguém pra passar os dias ruins.

Enquanto isso, navegando vou sem paz.
Sem ter um porto, quase morto, sem um cais.

E eu nunca vou te esquecer amor,
Mas a solidão deixa o coração neste leva e traz.

Veja bem além destes fatos vis.
Saiba, traições são bem mais sutis.
Se eu te troquei não foi por maldade.
Amor, veja bem, arranjei alguém
chamado saudade.

sábado, outubro 14, 2006

notícias

Nossa! Quanto tempo sem dar nenhuma notícia... não, eu não me esqueci do blog e nem desisti dele, mas esse semestre está meio corrido e eu ando sem nenhum tempo pra poemas, infelizmente... assim que der uma acalmada volto a postar!
Será que alguém ainda passa por aqui?

domingo, junho 11, 2006

(sem nome) - Pablo Neruda

Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo,
que solidão errante até tua companhia!
Seguem os trens sozinhos rodando com a chuva.
Em taltal não amanhece ainda a primavera.
Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos,
juntos desde a roupa às raízes,
juntos de outono, de água, de quadris,
até ser só tu, só eu juntos.
Pensar que custou tantas pedras que leva o rio,
a desembocadura da água de Boroa,
pensar que separados por trens e nações
tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos
com todos confundidos, com homens e mulheres,
com a terra que implanta e educa cravos.

quinta-feira, maio 25, 2006

A comédia dos anjos - Adriana Falcão

"Muitos guarda-chuvas se abriram, crentes, talvez, que eram flores, já que não é característica de guarda-chuva ter conhecimento de que só se abre porque é aberto."

----------------------------

trecho do livro "A Comédia dos Anjos" de Adriana Falcão; Ed. Planeta; pág. 10

segunda-feira, maio 15, 2006

Galo Galo - Ferreira Gullar

O galo
no salão quieto.

Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.


De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.


Mede os passos. Pára.
Inclina a cabeça coroada
dentro do silêncio:


—— que faço entre coisas ?

—— de que me defendo ?


Anda.
No saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.


Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura ?


Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora ?
Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório ?


Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa


Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito.


Vê-se: o canto é inútil.


O galo permanece — apesar
de todo o seu porte marcial —
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave gurreeira!


Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
não seria tão rouco
e sangrento


Grito, fruto obscuro
e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.

sexta-feira, maio 12, 2006

Cata-Vento - Federico García Lorca

Vento do Sul,
moreno, ardente,
que passas sobre minha carne,
trazendo-me semente
de brilhantes
olhares, empapado
de flores de laranjeira.

Tornas vermelha a lua
e soluçantes
os álamos cativos, mas vens
demasiado tarde!
Já enrolei a noite do meu conto
na estante!

Sem nenhum vento,
acredita em mim!,
gira, coração;
gira, coração.

Ar do Norte,
urso branco do vento!
Que passas sobre minha carne
tremente de auroras
boreais,
com tua capa de espectros
capitães,
e rindo estrepitosamente
do Dante.
Oh! polidor de estrelas!
Mas vens
demasiado tarde.
Meu armário está musgoso
e perdi a chave.

Sem nenhum vento,
acredita em mim!,
gira, coração;
gria, coração.

Brisas, gnomos e ventos
de nenhuma parte.
Mosquitos de rosa
de pétalas pirâmides.
Alísios destetados
entre as rudes árvores,
flautas na tormenta,
deixai-me!
Tem fortes cadeias
minha recordação,
e está cativa a ave
que desenha com trinos
a tarde.

As coisas que vão não voltam nunca,
todo mundo sabe disso,
e entre o claro gentio dos ventos
é inútil queixar-se.
Não é verdade, choupo, mestre da brisa?
É inútil queixar-se!

Sem nenhum vento,
acredita em mim!
gira, coração;
gira, coração.

quarta-feira, abril 26, 2006

No mundo das fadas - Carlos Figueiredo

No mundo das fadas
cada nome é usado uma única vez

em histórias contadas pelo vento
A luz é uma música
o mar é curvo
os olhos são espelhos
e a noite é um grito
e é dos seus gemidos
que surge a areia das praias.

No mundo das fadas
o Tempo é um luar
no bosque da memória
onde correm almas de rios
em cachoeiras-miragens
até um lago
feito da pele que vai saindo do arfar
de um coração-estrela.

No mundo das fadas
um Dia é Amor
dedos são crianças
e há uma torre
onde não há nada.

No mundo das fadas
raízes são pássaros
rostos são relâmpagos.

E se respiram lâminas
delgadas, rítmicas, fatais,
que se morre a cada instante

e a cada volta
é preciso substituir o coro.

domingo, abril 23, 2006

Teresa - Manuel Bandeira

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do
                                                                       [corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.



Meu irmão achou meu "Libertinagem e Estrela da Manhã", que bom!!! Estava há meses procurando esse livro!

sexta-feira, abril 21, 2006

Meu Povo, Meu Poema - Ferreira Gullar

Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta

terça-feira, abril 18, 2006

Canto para as Transformações do Homem - Moacyr Félix

- Meu pai, o que é liberdade?
- É o seu rosto, meu filho,
o seu jeito de indagar
o mundo a pedir guarida
no brilho do seu olhar.
A liberdade, meu filho,
é o prórpio rosto da vida
que a vida quis desvendar.
É sua irmã numa escada
iniciada há milênios
em direção ao amor,
seu corpo feito de nuvens
carne, sal, desejo, cálcio
e fundamentos de dor.
A liberdade, me filho,
é o próprio rosto do amor.

- Meu pai, o que é a liberdade?

A mão limpa, o copo d'água
na mesa qual num altar
aberto ao homem que passa
com o vento verde do mar.
É o ato simples de mar
o amigo, o vinho, o silêncio
da mulher olhando a tarde
- laranja cortada ao meio,
tremor de barco que parte,
esto de crina sem freio.

- Meu pai, o que é a liberdade?

É um homem morto na cruz
por ele próprio plantada,
é a luz que sua morte expande
pontuda como uma espada.
É Cuauhtemoc a criar
sobre o braseiro que o mata
uma rosa de ouro e prata
para a altivez mexicana.
São quatro cavalos brancos
quatro bússolas de sangue
na praça de Vila Rica
e amis Felipe dos Santos
de pé a cuspir nos mantos
do medo que a morte indica.
É a blusa aberta do povo
bandeira branca atirada
jardim de estrelas de sangue
do céu de maio tombadas
dentro da noite goyesca.
É a guilhotina madura
cortando o espanto e o terror
sem cortar a luz e o canto
de uma lágrima de amor.
É a branca barba de Karl
a se misturar com a neve
de Londres fria e sem lã,
seu coração sobre as fábricas
qual gigantesca maçã.
É Van Gogh e sua tortura
de viver num quarto em Arles
com o sol preso em sua pintura.
É o longo verso de Whitman
fornalha descomunal
cozendo o barro da Terra
para o tempo industrial.
É Frederico em Granada.
É o homem morto na cruz
por ele próprio plantada
e a luz que sua morte expande
pontuda como uma espada.

- Meu pai, o que é a liberdade?

A liberdade, meu filho
é coisa louca que assusta:
visão terrível (que luta!)
da vida contra o destino
traçado de ponta a ponta
como já contada conta
pelo som dos altosa sinos.
É o homem amigo da morte
por querer demais a vida
- a nunca podrida.
É o sonho findo em desgraça
desta alma que, combalida,
deixou suas penas de graça
na grade em que foi ferida...
A liberdade, meu filho,
é a realidade do fogo
do meu rosto quando eu ardo
na imensa noite a biuscar
a luz que pede guarida
na trevas do meu olhar.

A pedra mais alta - Fernando Anitelli

Me resolvi por subir na pedra mais alta
Pra te enxergar sorrindo da pedra mais alta
Contemplar teu ar, teu movimento, teu canto
Olhos feito pérola, cabelo feito manto

Sereia bonita sentada na pedra mais alta
To pensando em me jogar de cima da pedra mais alta
Vou mergulhar, talvez bater cabeça no fundo
Vou dar braçadas remar todos mares do mundo

O medo fica maior de cima da pedra mais alta
Sou tão pequenininho de cima da pedra mais alta
Me pareço conchinha ou será que conchinha acha que sou eu?
Tudo fica confuso de cima da pedra mais alta

Quero deitar na tua escama
Teu colo confessionário
De cima da pedra não se fala em horário
Bem sei da tua dificuldade na terra
Farei o possível pra morar contigo na pedra

Sereia bonita descansa teus braços em mim
Não quero tua poesia teu tesouro escondido
Deixa a onda levar todo esboço de idéia de fim
Defina comigo o traçado do nosso sentido

Quero teu sonho visível da pedra mais alta
Quero gotas pequenas molhando a pedra mais alta
Quero a música rara o som doce choroso da flauta
Quero você inteira e minha metade de volta

Mi Retrato - Lil Figueroa Acuña

Miro mis ojos y veo los tuyos,
llevan el brillo de tu inspiración
Miro en mis ojos el azul del cielo,
y un barquito navega en mi cariño

Miro mis ojos y veo los tuyos,
vuelo de colores sobre mi piel
Miro mis ojos y veo los tuyos,
Un arco iris pintado sobre tu cara, tu pelo y mi alma.

Miro mis ojos y veo los tuyos,
vuelo de colores sobre mi piel
Miro mis ojos, veo los tuyos,
en mi retrato, tu corazón

Y se ilumina el pincel, con cansancio fiel,
obrero de mil ojos de miel

http://www.laconversa.com.ar

essa é a letra de uma música do Grupo Argentino "La Conversa". Tive muita sorte em conhecer esse grupo, estava andando nas ruas de Buenos Aires quando fui enfeitiçada pelo som de uma música, segui o som e encontrei na rua esses 6 músicos, tocando e cantando "Mi Retrato" e logo me apaixonei!

sexta-feira, março 31, 2006

sem título - Julia Moreira

Miragem passageira.
Lá no alto,
revela o que ainda não é.
Solta-se no ar e paira
simplesmente.
Mimetiza!

sem título (última estrela a...) - Alberto Caeiro

Última estrela a desaparecer antes do dia,
Pouso no teu trémulo azular branco os meus olhos calmos,
E vejo-te independentemente de mim,
Alegre pela vitória que tenho em poder ver-te
Sem "estado de alma" nenhum, salvo ver-te.
A tua beleza para mim está em existires.
A tua grandeza está em existires inteiramente fora de mim.

sem título (não sei o que é...) - Alberto Caeiro

Não sei o que é conhecer-me. Não vejo para dentro.
Não acredito que eu exista por detrás de mim.

sem título (como uma criança...) - Alberto Caeiro

Como uma criança antes de a ensinarem a ser grande,
Fui verdadeiro e leal ao que vi e ouvi.

quarta-feira, março 08, 2006

Auto-retrato - Vinicius de Moraes

Nome: Vinicius. Por que?
O quo vadis, saindo em 13
Ano em que também nasci.
Sobrenome: de Moraes
De Pernambuco, Alagoas
E Bahia (que guardo em mim).
Sou carioca da Gávea
Bairro amado, de onde nunca
Deveria ter saído.
Fui, sou e serei casado
E apesar do que se diz
Não me acho tão mal marido.
Filho: três e um a caminho
Altura: um metro e setenta
Meão, pois. O colarinho
Trinta e nove e o pé quarenta.
Peso: uns bons setenta e três
(Precisam ser reduzidos...)
Dizem-me poeta; diplomata
Eu o sou, e por concurso
Jornalista por prazer.
Nisso tenho um grande orgulho
Breve serei cineasta
(Ativo). Sou materialista.
Deito mais tarde do que devo
E acordo antes do que gosto.
Fui auxiliar de cartório
Censor cinematográfico
Funcionário (incompetente)
Do Instituto dos Balcários.
Atualmente sou segundo
Secretário de Embaixada.
Formei-me em direito, mas
Sem nunca ter feito prática.
Infância: pobre mas linda
Tão linda que mesmo longe
Continua em mim ainda.
Prefiro vitrola a rádio
Automóvel a trem, trem
A navio, navio a avião
(De que já tive um desastre).
Se voltasse a vida atrás
Gostaria de ser médico
Pois sou médico nato.
Minhas frutas prediletas
Por ordem de preferência:
Caju, manga e abacaxi.
Foi com meu pai, Clodoaldo
De Moraes, poeta inédito
Que aprendi a fazer versos
(Um dia furtei-lhe um
Para dar à namorada).
Tinha dezenove anos
Quando estreei com meu livro
“O Caminho para a Distância”
Meu preferido é o último:
“Poema, Sonetos e Baladas”.
Toco violão, de ouvido
E faço sambas de bossa
Garoto, lutei “jiu-jitsu”
Razoavelmente. No tiro
Sobretudo em carabina
Sou quase perfeito. As coisas
Que mais detesto: viagens
Gente fiteira, facistas,
Racistas, homem avarento
Ou grosseiro com a mulher.
As coisas que mais gosto:
Mulher, mulher e mulher
(Com prioridade a minha)
Meus filhos e meus amigos.
Ajudo bastante em casa
Pois sou bom cozinheiro
Moro em Paris, mas não há nada
Como o Rio de Janeiro
Para me fazer feliz
(E infeliz). Desde os sete anos
Venho fazendo versinhos
Gosto muito de beber
E bebo bem (hoje menos
Do que há dez anos atrás).
Minha bebida é o uísque
Com pouca água e muito gelo.
Gosto também de dançar
E creio ser esta coisa
A que chamam de boêmio.
Em Oxford, na Inglaterra
Estudei Literatura
Inglês, o que foi
Para mim fundamental.
Gostaria de morrer
De repente, não mais que
De repente, e se possível
De morte bem natural.
E depois disso, ao amigo
João Conde nada mais digo.

http://www.viniciusdemoraes.com.br/

sábado, março 04, 2006

Por muitas esquinas - Cecília Meireles

Por muitas esquinas
de muitas cidades
existem ruínas
de felicidades.

Pedras de esperanças.
Ventos de suspiros.
Oh, juras e giros
de antigas andanças!

Por muitas cidades
de muitas esquinas
ficaram neblinas
quase de saudades.

Aos fantasmas vivos
parecem estranhas
as coisas tamanhas
de que eram cativos.

Aquelas esquinas!
aquelas cidades!
aquelas divinas
inutilidades!

Não somos só brumas?
ruínas apenas
de sonhos e penas
nenhuns e nenhumas?

sexta-feira, março 03, 2006

O plantador de girassóis - Flora Figueiredo

Lá vai ele semeando azuis.
Passa por terras ácidas,
por marés graves,
que converte em focos de luz.
Deve ter uma orquestra no bolso
e sementes de sol no coração.
A fila cresce:
o que admira,
a que suspira,
a que padece.
O semeador avança,
a orquestra toca,
o mundo, sem querer, entra na dança.
A festa aumenta.
Se a noite ciumenta se apresenta
e em protesto espalha seu negrume,
o semeador derrete a escuridão:
seduz a estrela e acende um vagalume.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Uns versos - Adriana Calcanhotto

Sou sua noite, sou seu quarto
Se você quiser dormir
Eu me despeço
Eu em pedaços
Como um silêncio ao contrário
Enquanto espero
Escrevo uns versos
Depois rasgo

Sou seu fado, sou seu bardo
Se você quiser ouvir
O seu eunuco, o seu soprano
Um seu arauto
Eu sou o sol da sua noite em claro,
Um rádio
Eu sou pelo avesso sua pele,
O seu casaco
Se você vai sair
O seu asfalto
Se você vai sair
Eu chovo
Sobre o seu cabelo pelo seu itinerário
Sou eu o sou paradeiro
Em uns versos que eu escrevo
Depois rasgo
E depois rasgo

http://www.adrianacalcanhotto.com.br



Demorei um pouco pra postar a letra dessa música da Adriana, não sei bem porque. Acho-a belíssima!

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Onze e Meia - Antonio Cicero

Quando a noite vem
um verão assim
abrem-se cortinas varandas
janelas prazeres jardins

Onze e meia alguém
concentrado em mim
no espelho castanho dos olhos
vê finalidades sem fim

Não lhe mostro todos os bichos que tenho de uma vez
Armo o circo com não mais do que uns cinco ou seis
leão camelo garoto acrobata
e não há luar
e os deuses gostam de se disfarçar



Fazia tempo que eu não postava nada do Antonio Cicero... Já estava começando a ficar com saudades! Como eu amo esse poeta!

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Soneto de aniversário - Vinicius de Moraes

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece....
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.

http://www.viniciusdemoraes.com.br/

Clara, Feliz Aniversário!

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

sem título (passa uma borboleta...) - Alberto Caeiro

Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Céu - Manuel Bandeira

A criança olha
Para o céu azul.
Levanta a mãozinha.
Quer tocar o céu.

Não sente a criança
Que o céu é ilusão:
Crê que o não alcança,
Quando o tem na mão.

domingo, fevereiro 05, 2006

A Folha - Carlos Drummond de Andrade

A natureza são duas.
Uma, tal qual se sabe a si mesma.
Outra, a que vemos. Mas vemos?
Ou é a ilusão das coisas?

Quem sou eu para sentir
o leque de uma palmeira?
Quem sou, para ser senhor
de uma fechada, sagrada
arca de vidas autônomas?

A pretensão de ser homem
e não coisa ou caracol
esfacela-me em frente à folha
que cai, depois de viver
intensa, caladamente,
e por ordem do Prefeito
vai sumir na varredura
mas continua em outra folha
alheia a meu privilégio
de ser mais forte que as folhas.

Auto-Retrato - Moacir Félix

Certa vez, numa aventura estranha
fugi
do estreito túmulo em que me estorcia
para uma ampliação sem fim.
Quando voltei
e senti, de novo, ferindo-me, o peso dos grilhões,
então não mais sabia quem eu era.
E nunca mais soube quem eu sou.
Talvez a sombra triste de um sonho de poeta.
Talvez a misteriosa alma de uma estrela
a guardar ainda no profundo cerne
a ilógica saudade de um passado astral.

Eu, Etiqueta - Carlos Drummond de Andrade

Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrina me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.

Motivo - Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou se desfaço,
- Não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Traduzir-se - Ferreira Gullar

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

http://portalliteral.terra.com.br/ferreira_gullar/

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Febre de poesia - Julia Moreira

Um dia Clara acordou diferente;
parecia apenas saber falar palavras de desvario...
do passarinho que desapareceu de cantar
de sonho, de neve, mão, coração!
Paes Gullar Drummond Rosa Bonfim!
Onça que come menino,
minutos correndo nas veias,
janela aberta
luz que entra!

Chamaram um médico
de preocupados que estavam
com o desvario de Clara.

- Ah, não é nada! Ela só quer brincar de poesia!

Cantiga para não morrer - Ferreira Gullar

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Acima de qualquer suspeita - José Paulo Paes

a poesia está morta

mas juro que não fui eu

eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la

imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres car-
los drummond de andrade manuel bandeira murilo
mendes vladmir maiakóvski joão cabral de melo neto
paul éluard oswald de andrade guillaume appolinaire
sosígenes costa bertolt brecht augusto de campos

não adiantou nada

em desespero de causa cheguei a imitar um certo (ou
incerto) josé paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada
de ferro araraquarense

porém ribeirãozinho mudou de nome a estrada de ferro
araraquarense foi extinta e josé paulo paes parece
nunca ter existido

nem eu

Calor - Adriana Calcanhotto

Tarde turquesa
Quarenta graus
Talvez porque você não esteja
tudo lateja
Tarde sem nuvem
Cincoenta graus
Talvez por sua ausência
tudo derreta

Noite sem ninguém
Nada se mexe
Eu sonho nosso amor a sério
E você em outro hemisfério

Enquanto tudo derrete
Enquanto tudo derrete
Enquanto tudo parece
Derreter

http://www.adrianacalcanhotto.com.br

Infantil - Manoel de Barros

O menino ia no mato
E a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou por dentro do corpo do menino
E ele foi contar para a mãe.
A mãe disse: mas se a onça comeu você, como é que o caminhão passou por dentro do seu corpo?
É que o caminhão só passou renteando meu corpo
E eu desviei depressa.
Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer razão.

O que Foi - Arnaldo Antunes

O que
(se) foi
é (s)ido

Delírio - Guimarães Rosa

No parque morno, um perfumista oculto
ordenha heliotrópios...
Deixa aberta a janela...
Minhas mãos sabem de cor o teu corpo,
e a alcova é morna...
Apaguemos a luz...

Não sentes na tua boca
um gosto de papoulas?...
Passa o lenço de seda de tuas mãos
sobre minha fronte,
e não me digas nada:
a febre está, baixinho, ao meu ouvido,
falando de ti....

Fragmento de Poema - Paulo Bonfim

Nunca seremos os mesmos
Na face azul da manhã.
Somos os prisioneiros do tempo:
Há minutos vermelhos
Correndo em nossas veias

quarta-feira, janeiro 25, 2006

A moça do vestido verde - Flora Figueiredo

Discreta, ela atravessa a rua em linha reta.
Todos os dias a vejo passar no mesmo horário.
O vestido ligeiramente comprido,
cintura no lugar, bolsa na mão.
No pescoço, o cordão e o escapulário.
Ela não olha para os lados.
Para quê?
Mulheres são indecentes, homens safados.
O melhor é fingir que não se vê.
E os camelôs e suas barracas ilegais?
Ela arrisca um olho
seduzida pelo barulho colorido,
mas logo se arrepende e não olha mais:
seu recato não permite resvalar o proibido.
Ontem, a moça do vestido verde deu um encontrão
no rapaz de bigodinho, pasta, perfume, colarinho;
o conteúdo da bolsa espalhou-se pelo chão.
Constrangido, ele ajudou a moça do vestido,
pediu desculpas, beijou-lhe a mão.
Hoje, eu a vejo passar na hora certa.
A bolsa, a cintura no lugar, a postura ereta.
Ela pára, olha para os lados, retoca-se no espelho.
A moça segue radiante. O vestido é vermelho.

terça-feira, janeiro 24, 2006

Convite – José Paulo Paes

Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.

Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.

As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.

Como a água do rio
que é água sempre nova.

Como cada dia
que é sempre um novo dia.

Vamos brincar de poesia?

Dilema - Antonio Cicero

O que muito me confunde
é que no fundo de mim estou eu
e no fundo de mim estou eu.
No fundo
sei que não sou sem fim
e sou feito de um mundo imenso
imerso num universo
que não é feito de mim.
Mas mesmo isso é controverso
se nos versos de um poema
perverso sai o reverso.
Disperso num tal dilema
o certo é reconhecer:
no fundo de mim
sou sem fundo.

Exausto - Adélia Prado

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

Antes do Nome - Adélia Prado

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás",
o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível
muleta que me apóia.

Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.

Em momentos de graça, infreqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

Tarde de cetim - Flora Figueiredo

Na penumbra da sala fechada,
pingam palavras de camurça
sobre os seios brancos da donzela recatada.
Dedos fervilhantes afagam almofadas
à espreita de mamilos principiantes.
No piano de cauda, pálpebra baixada,
dormita o teclado.
Chopin na partitura queda-se calado.
O ar é quente e a sala escura.
Do par de candelabros escorrem
luzes de cera frouxamente amarelas.
O anjo rotundo baixa a sentinela.
Rompe-se a textura do silêncio
com um súbito ruído:
sobre a calma do tapete, um cristal partido.
Tomba uma rosa cor-de-vinho
junto ao coração de esmalte azul-marinho.

sábado, janeiro 21, 2006

Blanco - Octávio Paz

Me vejo no que vejo
Como entrar por meus olhos
Em um olho mais límpido

Me olha o que eu olho
É minha criação
Isto que vejo

Perceber é conceber
Águas de pensamentos
Sou a criatura do que vejo

sexta-feira, janeiro 20, 2006

INSCRIÇÃO - Cecília Meireles

Sou entre flor e nuvem,
estrela e mar.
Po que havemos de ser unicamente humanos,
limitados em chorar?

Não encontro caminhos
fáceis de andar.
Meu rosto vário desorienta as firmes pedras
que não sabem de água e de ar.

E por isso levito.
É bom deixar
um pouco de ternura e encanto indiferente
de herança, em cada lugar.

Rastro de flor e estrela,
nuvem e mar.
Meu destino é mais longe e mais passo mais rápido:
a sombra é que vai devagar.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Como nascem as manhãs - Flora Figueiredo

O fundo dos olhos da noite
guarda silêncios.
Esconde na retina
a menina que corre descalça em campo aberto.
Pálpebras cerradas, a noite emudece.
A menina com medo
faz um furo no escuro com a ponta do dedo.
Cai um pingo de luz.
Amanhece.

sexta-feira, janeiro 06, 2006

O Urubuzeiro - Manoel de Barros

Meu amigo Sebastião estourou a infância dele e mais duas pernas
No mergulho contra uma pedra na Cacimba da Saúde.
Quarenta anos mais tarde Sebastião remava uma canoa no rio Paraguaio
E deu o barranco de uma charqueada.
Sebastião subiu o barranco se arrastando como um caranguejo trôpego
Até a casa do patrão e pediu um trabalho.
O patrão olhou para aquele pedaço de pessoa e disse:
Você me serve para urubuzeiro.
(Urubuzeiro era uma tarefa de espantar urubus que atentavam nos tendais
de carne.)
trabalho de Sebastião era espantas os urubus.
Sebastião espantava espantava espantava.
Os urubus voltavam de bandos.
Sebastião espantava espantava.
Um dia pegaram Sebastião a prosear em estrangeiro com os urubus.
Chegou que Sebastião permitiu que os urubur fizessem farra nas carnes.
Os urubus faziam farra nas carnes e conversavam em estrangeiro com
Sebastião.
Veio o patrão e mandou Sebastião para o manicômio.
No manicômio ninguém compreendia a língua de Sebastião
De forma que Sebastião despencou do seu normal
E foi encontrado na rua falando sozinho em estrangeiro.