quinta-feira, novembro 24, 2005

Narciso e Narciso - Ferreira Gullar

Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.

Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
                                E se amam mentindo
                                no fingimento que é necessidade
                                e assim
                                mais verdadeiro que a verdade.

Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
                     E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
                        - e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
                     se odiando.

O espelho
                embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
                       que o inferno de Narciso
                       é ver que o admiravam de mentira.

http://portalliteral.terra.com.br/ferreira_gullar/

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