sábado, dezembro 31, 2005

Esperança - Mário Quintana

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

"Nova Antologia Poética", pág. 118, Ed. Globo - S. Paulo, 1998.

sexta-feira, dezembro 30, 2005

Irene - Manuel Bandeira

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor

Imagina Irene entrando no céu
Dá licensa meu branco
Entra Irene
você não precisa pedir licença

Recordo ainda - Mário Quintana

Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...

Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...

Estrada afora após segui... Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai!...
Que envelheceu, um dia, de repente!...

quinta-feira, dezembro 29, 2005

Ordem do dia - Flora Figueiredo

Eu abro a janela,
você acende o céu,
o gato toca o guizo.
Se for preciso,
a gente chama a banda,
cobre de lírios o espaço da varanda,
dá um brilho na pátina da areia.
Risca-se o poente com giz colorido
que faça sentido com a pele do mar.
E se, ao final da linha,
o rádio anunciar que tudo deu errado:
a idéia faliu,
a alegria dormiu,
o projeto quedou-se malfadado;
negou-se o teorema,
falhou o sistema,
perdeu-se a teoria,
então, abriremos por fim a nossa caixa,
onde se conservam bem guardados
o sonho, o veludo e a fantasia.

sábado, dezembro 24, 2005

Poema de Natal - Vinicius de Moraes

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos –
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai –
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

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Natal - Vinicius de Moraes

De repente o sol raiou
E o galo cocoricou:

– Cristo nasceu!

O boi, no campo perdido
Soltou um longo mugido:

– Aonde? Aonde?

Com seu balido tremido
Ligeiro diz o cordeiro:

– Em Belém! Em Belém!

Eis senão quando, num zurro
Se ouve a risada do burro:

– Foi sim que eu estava lá!

E o papagaio que é gira
Pôs-se a falar: – É mentira!

Os bichos de pena, em bando
Reclamaram protestando.

O pombal todo arrulhava:
– Cruz credo! Cruz credo!

                                    Brava

A arara a gritar começa:

– Mentira? Arara. Ora essa!
– Cristo nasceu! – canta o galo.
– Aonde? – pergunta o boi.
– Num estábulo! – o cavalo
Contente rincha onde foi.

Bale o cordeiro também:

– Em Belém! Mé! Em Belém

E os bichos todos pegaram
O papagaio caturra
E de raiva lhe aplicaram
Uma grandíssima surra.

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sexta-feira, dezembro 23, 2005

O Relógio - Vinicius de Moraes

Passa, tempo, tic-tac
Tic-tac, passa, hora
Chega logo, tic-tac
Tic-tac, e vai-te embora
Passa, tempo
Bem depressa
Não atrasa
Não demora
Que já estou
Muito cansado
Já perdi
Toda a alegria
De fazer
Meu tic-tac
Dia e noite
Noite e dia
Tic-tac
Tic-tac
Dia e noite
Noite e dia

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segunda-feira, dezembro 19, 2005

Simbiose - Antonio Cicero

Sou seu poeta só
Só em você descubro a poesia
Que era minha já
Mas eu não via

Só eu sou seu poeta
Só eu revelo a poesia sua
e à noite indiscreta
você de lua.

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Narciso - Antonio Cicero

Narciso é filho de uma flor aquática
e de um rio meândrico. É líquido
cristalizado de forma precária
e preciosa, trazendo o sigilo

da sua origem no semblante vívido
conquanto reflexivo. Ousaria
defini-lo como a forma em que a vida
mesma se retrata. É pois fatídico

que, logo ao se encontrar, ele se perca
e ao se conhecer também se esqueça,
se está na confluência da verdade

e da miragem quando as verdes margens
da fonte emolduram sua imagem fluida
e fugaz de água sobre água cerúlea.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Poética - Vinicius de Moraes

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.

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terça-feira, dezembro 13, 2005

Poesia - Carlos Drummond de Andrade

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

Transforma-se o amador na cousa amada - Luís de Camões

Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si sómente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.

domingo, dezembro 11, 2005

Os versos que te fiz - Florbela Espanca

Deixe dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer !
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Tem dolencia de veludo caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer !

Mas, meu Amor, eu não te digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz !

Amo-te tanto ! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

Abril - Adriana Calcanhotto

Sinto o abraço do tempo apertar
e redesenhar minha escolhas
logo eu, que queria mudar tudo
me vejo cumprindo ciclos
gostar mais de hoje e gostar disso
Me vejo com seus olhos, tempo
espero pelas novas folhas
e imagino jeitos novos
para as mesmas coisas
logo eu, que queria ficar
pra ver encorparem os caules
lá vou eu, eu queria ficar
pra me ver mais tarde
sabendo o que sabem os velhos
pra ver o tempo e seu lento ácido
dissolver o que é concreto
E vejo o tempo em seu claroescuro
vejo o tempo em seu movimento
me marcar a pele fundo
me impelindo, me fazendo
logo eu, que fazia girar o mundo
logo eu, quem diria, esperar pelos frutos
Conheço o tempo em seus disfarces
em seus círculos de horas
se arrastando feito meses
se o meu amor demora
E vejo bem, tudo recomeçar todas as vezes
e vejo o tempo apodrecer e brotar e seguir sendo sempre ele
Me vejo o tempo todo
começar de novo
e ser e ter tudo pela frente
Me vejo o tempo todo
começar de novo
e ser e ter tudo pela frente

http://www.adrianacalcanhotto.com.br

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Soneto de fidelidade - Vinicius de Moraes

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa lhe dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure

http://www.viniciusdemoraes.com.br/

terça-feira, dezembro 06, 2005

Teu corpo - Ferreira Gullar

O teu corpo muda
independente de ti.
Não te pergunta
se deve engordar.

É um ser estranho
que tem o teu rosto
ri em teu riso
e goza com teu sexo.
Lhe dás de comer
e ele fica quieto.
Penteia-lhe os cabelos
como se fossem teus.

Num relance, achas
que apenas estás
nesse corpo.
Mas como, se nele
nascente e sem ele
não és?
Ao que tudo indica
tu és esse corpo
— que a cada dia
mais difere de ti.

E até já tens medo
de olhar no espelho:
lento como nuvem
o rosto que eras
vai virando outro.

E a erupção
que te surge no queixo?
Vai sumir? alastrar-se
feito impingem, câncer?
Poderás detê-la
com Dermobenzol?
ou terás que chamar
o corpo de bombeiros?

Tocas o joelho:
tu és esse osso.
Olhas a mão:
tu és essa mão.
A forma sentada
de bruços na mesa
és tu.
Quem se senta és tu,
quem se move (leva
o cigarro à boca,
traga, bate a cinza)
és tu.
Mas quem morre?
Quem diz ao teu corpo — morre —
quem diz a ele — envelhece —
se não o desejas,
se queres continuar vivo e jovem
por infinitas manhãs?

http://portalliteral.terra.com.br/ferreira_gullar/

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Sem Mandamentos - Oswaldo Montenegro

Hoje que quero a rua cheia de sorrisos francos
De rostos serenos, de palavras soltas
Eu quero a rua toda parecendo louca
com gente gritando e se abraçando ao sol
Hoje que quero ver a bola da criança livre
quero ver os sonhos todos nas janelas
quero ver vocês andando por aí
Hoje eu vou pedir desculpas pelo que eu não disse
Eu até desculpo o que você falou
eu quero ver meu coração no seu sorriso
e no olho da tarde a primeira luz
Hoje eu quero que os boêmios gritem bem mais alto
eu quero um carnaval no engarrafamento
e que dez mil estrelas vão riscando o céu
buscando a sua casa no amanhecer
Hoje eu vou fazer barulho pela madrugada
rasgar a noite escura como um lampião
eu vou fazer seresta na sua calçada
eu vou fazer misérias no seu coração
Hoje eu quero que os poetas dancem pela rua
pra escrever a músicas sem pretensão
eu quero que as buzines toquem flauta-doce
e que triunfe a força da imaginação

I am a stranger here myself - Kurt Weill (um trecho)

Hoje eu postarei algo diferente, que é um trecho de uma música.

"If gender is just a term in grammar,
How can I ever find my way,
Since I'm a stranger here myself?"

sexta-feira, dezembro 02, 2005

algumas coisas...

Ah, que vontade de postar um dos meus poemas, mas ainda não posso postá-los... um dia ainda posto um!

Tenho uma dúvida, será que alguém visita esse blog? Porque nunca ninguém comenta... Alguém???

Memória - Carlos Drummond de Andrade

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Hipótese - Carlos Drummond de Andrade

E se Deus é canhoto
e criou com a mão esquerda?
Isso explica, talvez, as coisas deste mundo.