quarta-feira, novembro 30, 2005

A uma passante - Baudelaire

A rua em derredor era um ruído incomum,
Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;

Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata.
Eu bebia perdido em minha crispação
No seu olhar, céu que germina o furacão,
A doçura que embala e o frenesi que mata.

Um relâmpago, e após a noite! - Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei um dia e já na eternidade?

Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado - e o sabias demais!

segunda-feira, novembro 28, 2005

sem título (Para além da curva da estrada...) - Alberto Caeiro

Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.

Alberto Caeiro é um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa

sexta-feira, novembro 25, 2005

Ah! Os Relógios - Mário Quintana

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...

quinta-feira, novembro 24, 2005

Narciso e Narciso - Ferreira Gullar

Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.

Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
                                E se amam mentindo
                                no fingimento que é necessidade
                                e assim
                                mais verdadeiro que a verdade.

Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
                     E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
                        - e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
                     se odiando.

O espelho
                embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
                       que o inferno de Narciso
                       é ver que o admiravam de mentira.

http://portalliteral.terra.com.br/ferreira_gullar/

quarta-feira, novembro 23, 2005

Anúncio da Rosa - Carlos Drummond de Andrade

Imenso trabalho nos custa a flor.
Por menos de oito contos vendê-la? Nunca.
Primavera não há mais doce, rosa tão meiga
onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis.

Uma só pétala resume auroras e pontilhismos,
sugere estâncias, diz que te amam, beijai a rosa,
ela é sete flores, qual mais fragrante, todas exóticas,
todas histórias, todas catárticas, todas patéticas.

Vêde o caule,
traço indeciso.

Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou?
Deus me ajudara, mas ele é neutro, e mesmo duvido
que em outro mundo alguém se curve, filtre a paisagem,
pense uma rosa na pura ausência, no amplo vazio.

Vinde, vinde,
olhai o cálice.

Por preço tão vil mas peça, como direi, aurilavrada,
não, é cruel existir em tempo assim filaucioso,.
Injusto padecer exílio, pequenas cólicas cotidianas,
oferecer-vos alta mercância estelar e sofrer vossa irrisão.

Rosa na roda,
rosa na máquina,
apenas rósea.

Selarei, venda murcha, meu comércio incompreendido,
pois jamais virão pedir-me, eu sei, o que de melhor se compôs na noite,
e não há oito contos. Já não vejo amadores de rosa.
Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia apodrece.

Aproveitem. A última
rosa desfolha-se.

O Morcego - Augusto dos Anjos

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

terça-feira, novembro 22, 2005

Os Poemas - Mário Quintana

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

Consolo na praia - Carlos Drummond de Andrade

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

Uma nova integrante!!

Agora a Julia não está mais sozinha, também eu vou postar aqui poemas e textos para todo mundo que entende o quanto a poesia e a literatura são importantes! Espero que gostem das nossas escolhas!
Qualquer sugestão que tiverem, poemas ou poetas que mais gostam etc., escrevam um comentário! Ah, já soube de algumas pessoas que foram escrever um comentário e acharam que só pode comentar quem é cadastrado no Blogger... em cima da caixa de texto tem três opções: "blogger", "outro" e "ânonimo". Se você não for cadastrado, escolha uma das duas últimas!!!
Agora preparem-se, o primeiro poema que eu postei é o meu preferido (ou um dos...) do Carlos Drummond de Andrade. Aproveitem!

Ana Clara

A Fábrica do Poema - Waly Salomão

sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento
encaixa palavra por palavra, tornei-me perito em extrair
faíscas das britas e leite das pedras.
acordo!
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo!
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento e evola-se,
cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido
acordo, e o poema miragem se desfaz
descontruído como se nunca houvera sido.
acordo! os olhos chumbados pelo mingau das almas
e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-me os dedos estarrecidos.
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
nao deve adiantar grande coisa permanecer à espreita
no topo fantasma da torre de vigia
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
               sob que mascará retornará o recalcado?

Poema de Waly Salomão musicado por Adriana Calcanhotto em seu cd "A Fábrica do Poema"

segunda-feira, novembro 21, 2005

A Valsa - Casimiro de Abreu

Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim.
Na valsa
Tão falsa,
Corrias
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila
Serena,
Sem pena
De mim!


Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas...
- Eu vi!...


Valsavas:
- Teus belos
Cabelos,
Já soltos,
Revoltos,
Saltavam,
Voavam,
Brincavam
No colo
Que é meu;
E os olhos
Escuros
Tão puros
Perjuros
Volvias,
Tremias,
Sorrias
Pra outro
Não eu!


Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
não mintas...
- Eu vi!...


Meu Deus
Eras bela,
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem?!


Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas...
- Eu vi!...


Calado,
Sozinho,
Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!
Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos
Nem voz!


Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues
não mintas...
- Eu vi!...


Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então,
Qual pálida
Rosa
Mimosa,
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida
No chão!


Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
não mintas...
- Eu vi!...

domingo, novembro 20, 2005

sem título (não basta abrir a janela...) - Alberto Caeiro

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E o sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

sábado, novembro 19, 2005

Iniciação - Eucanaã Ferraz

Conheço o primeiro livro de poemas:
Eu,
de Augusto dos Anjos.

Meu pai o tem
entre tratados de odontologia,
sem capa, velho,
enferrujado.

Livro misteriosíssimo,
no qual a morte é o superlativo
síntese de tudo,
absoluta como minha preguiça
de ir ao dicionário decifrar vocábulos.

http://www.eucanaaferraz.com.br/

sexta-feira, novembro 18, 2005

Os acrobatas - Vinicius de Moraes

Subamos!
Subamos acima
Subamos além, subamos
Acima do além, subamos!
Com a posse física dos braços
Inelutavelmente galgaremos
O grande mar de estrelas
Através de milênios de luz.

Subamos!
Como dois atletas
O rosto petrificado
No pálido sorriso do esforço
Subamos acima
Com a posse física dos braços
E os músculos desmesurados
Na calma convulsa da ascensão.

Oh, acima
Mais longe que tudo
Além, mais longe que acima do além!
Como dois acrobatas
Subamos, lentíssimos
Lá onde o infinito
De tão infinito
Nem mais nome tem
Subamos!

Tensos
Pela corda luminosa
Que pende invisível
E cujos nós são astros
Queimando nas mãos
Subamos à tona
Do grande mar de estrelas
Onde dorme a noite
Subamos!

Tu e eu, herméticos
As nádegas duras
A carótida nodosa
Na fibra do pescoço
Os pés agudos em ponta.

Como no espasmo.

E quando
Lá, acima
Além, mais longe que acima do além
Adiante do véu de Betelgeuse
Depois do país de Altair
Sobre o cérebro de Deus

Num último impulso
Libertados do espírito
Despojados da carne
Nós nos possuiremos.

E morreremos
Morreremos alto,
imensamente
IMENSAMENTE ALTO.

http://www.viniciusdemoraes.com.br/

quinta-feira, novembro 17, 2005

A realidade e a imagem - Manuel Bandeira

O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva
e desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
quatro pombas passeiam.

início de um blog...

Esse é o meu mais novo blog, por enquanto, estou só eu por aqui, mas assim que a Clara melhorar, acho que ela se juntará a mim. Bom, a idéia desse blog é a de postar poemas; e como alguns de vocês sabem, eu ando muito ligada em poesia nos últimos tempos, e sempre sentia falta de mostrar pra alguém um poema novo que eu tinha descoberto, ou um que já conhecia, e queria dividir. Pode ser que de vez em quando eu não coloque um poema inteiro, só uns versos soltos...